10 de novembro de 2010

Parte II


Também tenho uma noite em mim tão escura

que nela me confundo e paro

e em adágio cantabile pronuncio

as palavras da nênia ao meu defunto,

perdido nele, o ar sombrio.

(Me reconheço nele e me apavoro)

Me reconheço nele,

não os olhos cerrados, a boca falando cheia,

as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando,

mas um calor de cegueira que se exala dele

e pronto: ele sou eu,

peixe boi devolvido à praia, morto,

exposto à vigilância dos passantes.

Ali me enxergo, à força no caixão do mundo

sem arabescos e sem flores.

Tenho muito medo.

Mas acordo e a máquina me engole.

E sou apenas um homem caminhando

e não encontro em minha vestimenta

bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis,

me ameaçam.

Como não ter medo?

Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui

sobre esta noite maior e sem fantasmas.

como não morrer de medo se esta noite é fera

e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e

ainda insisto?

Não é viável.

Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou.

O que é viável não existe, passou há muito tempo

e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva

e eu menino.

eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas

que escorriam em tardes e manhãs sem pernas

e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua,

menino sentado sem a preocupação da ida.

E era todo dia.

Havia sol

e eu o sabia

sol: era de dia

Havia uma alegria

do tamanho do mundo

e era dia no mundo.

Havia uma rua

(debaixo dum dia)

e um tanque.

Mas agora é noite até no sol.

Torquato Neto



Nenhum comentário:

Postar um comentário