15 de maio de 2021

Fale de qualquer lugar

Perdemos muito tempo com coisas que, absolutamente, não importam muito. E cá irei eu não ser exceção à regra: perder tempo. Mas, talvez, àqueles a quem esse recado se destina, isso será significativo. 

Fora do meu ambiente profissional FALO sobre muita coisa, das tolices às utilidades públicas. E faço isso somente fora do ambiente de trabalho por julgar que lá é o LUGAR para servir aos que me buscam com a finalidade específica de aprender o que ensino. 

Não sei se ficou evidente, não obstante as palavras em caixa-alta, que o tema desse texto é o tal “lugar de fala”. Também não sei se ficou evidente que esse meu texto se destina apenas àqueles cuja mente ainda encontra-se aberta a enxergar as coisas por outro prisma e não apenas conforme a minoria barulhenta. Para aqueles que já se decidiram, esse texto dirá muito pouco. Aliás, para esses, eu sequer tenho “lugar de fala”. 

Estive tentando imaginar onde e como estaríamos hoje se caras como Sócrates, Aristóteles, Platão, Pitágoras, Euclides, Zenão de Eleia... tivessem que pensar se tinham ou não “lugar de fala” acerca dos temas de que trataram. Pode parecer exagero, mas, graças a caras como esses, nós podemos ler coisas interessantes e coisas asquerosas na internet hoje em dia. Graças ao debate filosófico e, posteriormente, ao debate acadêmico, foram possíveis diversos avanços na humanidade (inclusive a internet). Uma afirmação trivial, pois basta observar, por exemplo, como a troca de ideias e de experiências encurta caminhos, aumenta a velocidade de nosso amadurecimento.

Chegamos, contudo, a um ponto em que, exatamente do debate acadêmico, surgem ideias ditatoriais e tirânicas, que visam, por incrível que pareça, à anulação do debate, o preterimento da troca de ideias e de experiências, a seleção de quem pode falar e do que pode ou não ser dito. Parece um paradoxo que a academia promova essa autossabotagem, no entanto é exatamente a subversão da lógica a base de pensamentos como esse.

Fui expectador de uma discussão sobre a expressão "a situação tá preta", que, para alguns, não pode ser dita por ser racista. Sugeri uma aula do prof. José Luiz Fiorin sobre esse tema (para mim, o maior linguista vivo no Brasil). A exposição do professor era a de que há certos exageros, pois a expressão "a situação tá preta" tem origem na navegação. Trata-se de uma referência às nuvens da cor preta que indicam mau tempo para viagens marítimas. Associar essa expressão a algo racista é, para o professor, ampliar o preconceito e não diminuí-lo. "Ah mas só usa preto para coisas ruins"... Não sei se "nota preta" é algo ruim. Mas, enfim, não é esse o ponto...

(Um breve parêntese: Chico Buarque utilizou a expressão "a coisa aqui tá preta" na canção "Meu caro amigo", em coautoria com o grande Fancis Hime. Será que Chico Buarque foi racista? Enfim, retomemos...)

O ponto central aqui nem é a questão da expressão ou do racismo em si. Quero concentrar os esforços (talvez vãos esforços) à resposta que sobreveio: a de que o professor José Luiz Fiorin, uma das maiores autoridades brasileiras sobre estudos da linguagem, não tem lugar de fala sobre a expressão "a situação tá preta", pois é... branco!

Então, ecce thema! O tal "lugar de fala"... Escrevi há algum tempo um texto sobre uma sentença judicial acerca de uma acusação de estupro de uma influenciadora digital. Recebi de mais de uma pessoa o seguinte comentário: "você não tem lugar de fala". Ou seja: o professor Fiorin não tem lugar de fala sobre aquela expressão linguística porque é branco; eu não tenho lugar de fala sobre uma sentença judicial que envolve uma mulher porque sou homem.

Ignaz Semmelweis, médico do século XIX, foi responsável por uma descoberta que revolucionou a medicina. Num período em que um médico era considerado tanto melhor quanto mais sujo fosse seu avental, Semmelweis descobriu um modo de reduzir significativamente o número de mortes pós-parto: lavar bem as mãos e as roupas que ele utilizava durante o parto. Isso mesmo: um homem fez uma descoberta e influenciou a vida de mulheres porque ele falou algo de que, seguindo os dois "raciocínios" anteriores, ele não teria lugar.

(Pensei em trazer também a descoberta de Claude Veyne Winder, que sintetizou o ácido mefenâmico nos anos 1960, mas algumas pessoas nem sabem para que esse fármaco serve, então pode ser que a questão da irrealidade do "lugar de fala" não ficasse tão clara - ops, acabei de usar outra expressão racista, segundo as cartilhas!)

Meu principal objetivo aqui é o de refletir o seguinte: será que impedir o debate far-nos-á evoluir? 

Alguns professores, no ambiente profissional, aplaudem e incentivam crianças ou adolescentes que decoram cartilhas que ensinam as expressões proibidas (com base nas impressões subjetivas e não na realidade), mas que não sabem citar duas famílias da tabela periódica ou que, se não tiver internet, não conseguem achar um sinônimo para uma palavra de sua própria língua. Essas crianças/adolescentes estão observando a fala do professor não-militante não para adquirir conhecimento, mas para levantar a placa de "expressão proibida" e, caso o professor argumente, rebater com a resposta padrão: o professor não tem lugar de fala. 

Será que é isso que nos tornará melhores? Que nos livrará da subserviência a outros países quando se trata de avanços técnicos e científicos? Com todo respeito aos que pensam diferente, eu só consigo enxergar que a ansiedade, o déficit de atenção, a falta de foco, a desmotivação dessas crianças e adolescentes vêm precisamente do fato de estarem mais preocupadas se estão ou não em seus lugares de fala do que com seus lugares no mundo.

Àqueles que dão "um tempo no ressentimento" e dão "zoom nos pontos em comum", deixo meu apoio a continuarem assim, sem ampliar preconceitos e sem impedir o debate. "Estamos separados e divididos, mas um dia nós seremos a maioria".

11 de maio de 2021

Verdades fabricadas

Estava aqui me lembrando do cara que deixou uma mensagem libertadora dois milênios atrás...  Essa mensagem, ainda tão ignorada, rejeitada e às vezes silenciada, na verdade, é um convite cujo fim é escancarar que nossa pequenez e nossa imundície podem ser convertidas em perfeição quando entregamos nossas alegrias e dores nas mãos de quem nos prometeu a Glória. Essa mensagem, meu caro, não é fabricada pelos realities show e distribuídas no atacado pelas redes sociais. 

Hoje, super atrasados, ex-integrantes de reality show, influenciadores e demais personagens, depois de sua jornada de crescimento midiatizado, viram portadores de verdades, tornam-se alvo de toda a nossa atenção, por meio de entrevistas, peças publicitárias, memes e até filmes que contam detalhadamente sua redenção. Viram, pelo poder cinematográfico da mídia, exemplos a serem seguidos, personalidades históricas, viram repertório a ser utilizado na redação do Enem... 

E assim vamos permitindo que interesses comerciais virem a lente pela qual enxergamos toda a caminhada da humanidade. Vamos reduzindo todo o aprendizado de milênios de experiência humana ao simples lampejo da vida de alguém que está engatinhando no conhecimento de si mesmo. Assim vamos engolindo que aquela pessoa, transformada em outdoor de grandes marcas, vire um modelo de vida a ser seguido. 

De repente, você fecha os olhos e se pergunta por que esse mundo está cada vez mais doente. Se ficar com os olhos fechados por mais tempo, vai encontrar a resposta. Vai encontrá-la precisamente na transformação da Fé em paixão a ídolos fabricados com fins puramente comerciais. Se deixar os olhos fechados mais um tempinho, vai perceber que você é um simples número, você é um mero seguidor. 

Enquanto isso, Jesus, mesmo sendo Rei dos Reis, está aí no seu coração, chamando você de amigo, sendo sua companhia no sofrimento, torcendo piamente pelo seu crescimento, querendo ver você reluzente e não nas sombras de alguém, esperando você na Glória eterna e não preso no contentamento de tão pouco nesta vida. 

Foi isso tudo que me fez lembrar no cara que já cantou esta pedra há tanto tempo: mostrou-nos um caminho a seguir, no qual pedras e espinhos devem ser removidos para que nos transformemos em terreno fértil de frutos que, na hora certa, tornam-se sementes de esperança, único remédio possível da doença mortal que nos infecta e nos rouba a liberdade. Enfim, amigo, jamais se esqueça da “æterna veritas et sapientia quæ nec fallere nec falli potest”.

4 de novembro de 2020

O tal “estupro culposo”

Um pequeno resumo cuja pretensão é simplesmente tentar compreender, pelo prisma da compreensão textual, um texto jurídico debatido em profusão pelo prisma midiático. Essa postagem não se trata de debate jurídico (afinal, não sou jurista), mas de um trabalho de compreensão textual (minha profissão) da sentença que serviu para ver o quanto os brasileiros somos analfabetos em matéria de política.

1) O juiz inicia a sentença resumindo toda a cronologia do processo, apresentando todas as diligências e decisões do caso, o que inclui o deferimento de prisão temporária do réu. 

2) Na fundamentação, o juiz apresenta a lei utilizada como fundamento pela denúncia inicial: 

 "Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009). Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009). § 1 o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009 – grifou-se)" 

 3) O juiz recorre a uma citação de Greco (2017): 

“deverá o agente ter conhecimento de que a vítima é menor de 14 (catorze) anos, ou que esteja acometida de enfermidade ou deficiência mental, fazendo com que não tenha o discernimento necessário para a prática do ato, ou que, por outra causa, não possa oferecer resistência. Se, na hipótese concreta, o agente desconhecia qualquer uma dessas características constantes da infração penal em estudo, poderá ser alegado o erro de tipo, afastando-se o dolo e, consequentemente, a tipicidade do fato.” 

Na prática, a lei deixou aberta uma possibilidade que foi bem aproveitada pela defesa. A possibilidade é a seguinte: a vítima não era menor de 14 anos (tinha 21 anos na data alegada) e sem enfermidade ou deficiência mental (a vítima não tinha essa condição e a incapacidade de oferecer resistência não era de ordem biológica) — exclui-se a primeira parte em que a lei serviria para o caso; o acusado não tinha conhecimento de que a vítima não poderia oferecer resistência — exclui-se a segunda parte da previsão legal. 

4) O juiz trata da definição de vulnerabilidade. Utiliza uma longa citação de Masson (2017), cuja leitura apressada/equivocada/desonesta deve ser colocada em debate: 

"A vulnerabilidade tem natureza objetiva. A pessoa é ou não vulnerável, conforme reúna ou não as peculiaridades indicadas pelo caput ou pelo § 1.º do art. 217-A do Código Penal. Com a entrada em vigor da Lei 12.015/2009 não há mais espaço para a presunção de violência, absoluta ou relativa, na seara dos crimes sexuais. 

No entanto, nada impede a incidência do instituto do erro do tipo, delineado no art. 20, caput, do Código Penal, no tocante ao estupro de vulnerável, e também aos demais crimes sexuais contra vulneráveis. Com efeito, o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime não se confunde com a existência ou não da vulnerabilidade da vítima. 

[...] Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico. Esta conclusão é inevitável, inclusive na hipótese de inescusabilidade do erro, em face da regra contida no art. 20, caput, do Código Penal." 

É, pois, a citação de Masson (2017) que remete o famigerado “estupro culposo”, quando o autor está exatamente rechaçando essa possibilidade! 

5) O juiz reitera que “estupro de vulnerável” pressupõe, além da vulnerabilidade (pela idade ou pela condição física/psicológica), o pleno conhecimento do agressor de tais condições. Isso quer dizer que não houve o estupro? Não! Quer dizer que o juiz está dizendo não houve “estupro de vulnerável”, o crime pleiteado pela acusação. 

6) O juiz indica que não ficou totalmente demonstrado (com as provas apresentadas) que a vítima estava impossibilitada de oferecer resistência. 

7) Um trecho importante da sentença é a letra do próprio juiz: 

“não se desconhece que há provas da materialidade e da autoria, pois o laudo pericial confirmou a prática de conjunção carnal e ruptura himenal recente (fls. 764/765), também não se ignora que a ofendida havia ingerido álcool. Contudo, pela prova pericial e oral produzida considero que não ficou suficientemente comprovado que Mariana Borges Ferreira estivesse alcoolizada – ou sob efeito de substância ilícita – , a ponto de ser considerada vulnerável, de modo que não pudesse se opor a ação de André de Camargo Aranha ou oferecer resistência. Para tanto, o exames de alcoolemia e toxicológico (fls. 880/882) apresentaram resultado negativo.” 

Isso significa que é possível dizer que houve a relação sexual e que ela aconteceu com o acusado. No entanto, para o juiz, as provas de que não foi consensual são insuficientes.

8) Em relação às provas testemunhais, o juiz demonstra que apenas a versão da mãe é convergente com a versão da vítima. As demais testemunhas (inclusive as arroladas pela própria vítima) não corroboram os depoimentos da mãe e da filha. 

9) O juiz apresenta a tese de que o testemunho da vítima, por si só, pode sim ser elemento substancial, mas quando esse testemunho é “coerente e harmônico” com os demais elementos de prova, incluindo outros depoimentos. 

10) Uma das bases de sustentação da acusação é a de incapacidade de resistência, gerada por ingestão de álcool ou substância entorpecente. As imagens externas, cedidas pela Polícia Militar, indicam que a capacidade motora da vítima estavam intactas (de salto bem alto, andando normalmente, no percurso externo ao clube). 

11) Segundo o juiz, embora o depoimento de uma vítima de violência sexual seja preponderante, os demais elementos de prova precisam corroborar de algum modo a prova oral. No caso específico, há dúvidas em relação à verossimilhança do depoimento, considerando as provas colhidas. E, como sabido e citado no fim da sentença, “in dubio pro reo”. 

12) A decisão final é portanto a de que não há como definir quem está mentindo, uma vez que a prova oral da vítima só converge com a prova oral da mãe. Todas as demais provas orais e periciais divergem do que foi apresentado pela acusação. 

13) O juiz ressalta que a decisão não pode ser duvidosa, que ele precisa estar 100% convicto para apresentar sua sentença. 

14) Podemos resumir a peça no seu trecho final: “as provas acerca da autoria delitiva são conflitantes”. Isto é, não há como o juiz declarar culpado se ele não tiver elementos que fundamentem a sua certeza de que o acusado cometeu, de fato, o crime.

O resumo da ópera: 

O problema disso tudo é a revolta de alvo errado. Pelo modo como isso foi midiatizado, o leitor mediano (aquele que não vai ler a sentença nem buscar todas as informações acerca do caso, vai se contentar com manchetes e resumos) é induzido a se revoltar contra o juiz e contra o promotor do caso por terem absolvido o cara sob a alegação de “estupro culposo” - que sequer aparece no processo. Quem deveria ser o alvo de nossa revolta? Os parlamentares, cujos projetos vão deixando brechas na lei para que desgraçados saiam impunes diariamente. Talvez o juiz e o promotor do caso tenham feito de tudo para sentenciar o cara, mas se eles encaminham uma decisão e, num tribunal de segunda instância, a decisão fosse invalidada, os dois poderiam responder judicialmente por isso (de acordo com a lei de abuso de autoridade - criada por quem? Isso mesmo: pelos parlamentares).

Para ilustrar, um caso concreto: um dia desses um inseto foi filmado dando socos numa mulher. Descobri que o animal já responde a não sei quantos outros processos por agressão a mulheres, mas está respondendo a todos eles em liberdade... (se ele não estivesse em liberdade, não teríamos visto a cena que vimos) Por quê? Porque no Brasil não há prisão em segunda instância. E por quê? Porque a Constituição deixou a brecha. E onde está o conserto para essa brecha? Deve estar enfiado em alguma parte do corpo nada esguio do presidente da Câmara (Rodrigo Maia), que nunca colocou esse projeto pra ser votado.

A análise enviesada analfabetiza as pessoas, que já sabem muito pouco sobre o funcionamento dos poderes da nossa República, sobre legislação e sobre o papel de vereadores, deputados e senadores na consolidação de uma Justiça. Voltamos nossa mira para o alvo errado. E é o verdadeiro problema do brasileiro: observar os problemas sob perspectiva errada faz com que nunca consigamos resolvê-los, só os multiplica.

E, como somos todos Dory (sofremos de perda de memória recente), no próximo dia 15, o eleitor não vai pensar em nada disso e vai votar no candidato que já está há duzentos mandatos no cargo, só porque "ganhou/ganhará" uma coisinha em troca. Ou, tão ruim quanto: vai fazer voto de protesto e colocar algum palhaço na Câmara Municipal. 

14 de agosto de 2015

IX - Luminosidade



"Uma luz que não produz sombra..."

Toda luz precisa servir para algo: ser clarão em profunda escuridão, ser guia em caminho opaco, sinalizar um ponto almejado, tornar visível um ponto que não se vê, apontar para algo... Existe uma centelha divina dentro de cada coração e, por isso, podemos todos ser luz. Mas, é claro, nem todos sabem o que significa e muito menos como é ser luz.

Brilho bom é aquele que suavemente lhe aponta o caminho ou o objeto que se quer ver. Se a luz está muito forte, há saturação – um fotógrafo sabe bem a importância da luz: não pode ser demais nem de menos. Brilho suave ilumina de verdade. Brilho excessivo cega. Moderação sempre.

Brilho bom também é aquele que, sendo o objeto a própria fonte de luz, brilha a tal ponto de nos permitir ver os mínimos detalhes, aqueles escondidos de propósito, para que apenas os olhares atentos os alcançassem. Como quando estamos diante de um monitor: se houver muita luz, nada enxergamos e ainda podemos sentir graves desconfortos; se houver pouca luz, vemos mal e nem nos damos conta das ricas miudezas que ficamos sem conhecer. Brilho bom não toma luz emprestada para brilhar mais do que o brilho natural, afinal os únicos bons empréstimos são os de livros, quando você é o locador.

E ainda, brilho bom é aquele que não ilumina a si próprio, aquele que serve para apontar para algo. Quando o alvo é a própria fonte, algo vai muito mal – é preciso partir de um ponto para chegar a outro. Escapar da inércia, da estagnação. Esse brilho que aponta anuncia algo grande, maior que a própria fonte. E a verdade é que a meta certa de todas as luzes deveria ser só uma. Infelizmente muitas luzes distorcem, outras saturam, outras, por egoísmo, emitem pouca luz... Enfim, a maioria das luzes acaba sendo problemática em relação à meta. Obviamente, algumas vezes o problema não é a luz em si, mas os olhos de quem segue a luz – iluminação e os olhos do receptor precisam gerar um casamento perfeito, é o par – nem só um, nem só o outro. No fim das contas, o encontro das luzes também depende do projetista.

Parece, então, que encontrei a luz que emite o brilho certo. Como a Lua (até no nome), reconhece que o brilho não é seu próprio, mas dada por uma luz ainda maior. Como todos mereciam ser, aponta com carinho um caminho a seguir, caminho descoberto a cada dia sob a guia do Amor. Como eu precisava, me mostra que eu também sou luz, que também tenho essa centelha divina, que também aponto caminhos e que também ilumino escuridões. Como ninguém é capaz de merecer, é luz com brilho exato, sem excessos, sem ausências, sempre presente, sempre disposta, sempre fiel. Como luz que há de ser eterna, aponta para Deus e leva para junto dEle por meio do sorriso, por meio da dignidade e da liberdade de filha, de irmã, de amiga, de mulher errante, porque humana, e perfeita, porque divina.

É, pois com a luz que encerro, já que jamais serei de capaz de demonstrar e listar todos os atributos do Um Amor. Obrigado por ser única, concreta, livre, incompleta, regular, impecável, imprevisível, disponível, luminosa e todas as outras coisas que um dia, se Deus quiser, serei capaz de transformar em signos linguísticos. Obrigado por me fazer sermos nós. Obrigado por nos fazer sermos mais. Obrigado por ser O Amor.

VIII - Disponibilidade



"Tudo bem, seja o que for, seja por amor às causas perdidas"

As escolhas sempre nos guiam a algum lugar, às vezes bom, às vezes nem tanto assim (para ficarmos num eufemismo, já que a vida deveria ser mais eufêmica) e eu louvo Um Amor porque suas escolhas demonstram uma escolha: pela disponibilidade.

Estar disponível é para poucos porque a maioria não tem disposição para isso. Outros tantos acabam confundindo e achando que disponibilidade é estar pronto a qualquer hora para fazer qualquer coisa. Não é bem assim. Disponibilidade é estar disponível para o que, depois de ponderações diversas, de fato vale a pena. Muitos acabam nem pensando se aquilo para o qual delegam suas forças é ou não uma escolha sábia.

As causas perdidas a mim parecem ser aquelas que, de fato, devemos estar disponíveis. Inúmeras dessas causas existem por aí, e o número delas só aumenta. Tradição, responsabilidade, compromisso, disciplina, doação, tudo isso são rosas vermelhas num deserto de sal. A solidariedade tem se resumido a datas comemorativas, a ações visíveis e sob poderoso marketing.

Amar Um Amor é descobrir que porque as causas são perdidas é aí que elas são inspiradoras. Na verdade, o Um Amor é, humildemente e sem alarde, detentor de poder extraordinariamente formoso: o poder de transformar as causas perdidas em causas ganhas, mesmo que apenas pelo fato de terem sido defendidas.

Uma habilidade aqui e uma acolá, todas compõem um ser, mas o que seriam todos os dons, todos os desejos e os sonhos de um coração se não fosse a disponibilidade, se não fosse o estar aberto à maravilhosa missão de participar da brincadeira levemente séria e exageradamente feliz que é a vida, essa ciranda, essa brincadeira de roda. Somos duas das mãos na roda, somos duas das crianças da ciranda, somos duas hélices do moinho, somos duas cordas do violão... O que seríamos nós se não estivéssemos disponíveis, de prontidão para o amor?

Toda a gratidão do mundo a quem, pela disponibilidade, beija e abraça, chora e ri, briga e brinca, aprende e ensina, dá força e freia, ama e é amada. Só há uma que é assim, não há mais no mundo, é específica, determinada, definida, é o Um Amor.