30 de junho de 2010
Acolchoado
"Nem te conto...
– O quê? (O casal estava no carro, voltando de uma festa na casa de amigos. Marjori e Mário Luiz, idade entre 35 e 40 anos, classe B, B e meio, por aí.)
– Eu fui no banheiro...
– Eu vi.
– Você viu? Você passa o tempo todo me cuidando, Mário Luiz?
– Não, Marjori. Você tinha bebido, e eu achei que você estivesse passando mal.
– Eu quase não bebi e não estava passando mal. Fui fazer xixi.
– Está bem, está bem. O que você ia contar?
– Eu estava perfeitamente sóbria. Aliás, acho que era a única pessoa sóbria na festa.
– Está certo! Agora conta.
– Você sabe que o assento da privada no lavabo da Celinha é acolchoado?
– Acolchoado?
– E não só isso. O acolchoado é zebrado.
– Como, zebrado?
– Zebrado! O tecido que cobre o acolchoado tem um padrão de zebra. Preto e branco.
– E daí?
– Como “e daí”, Mário Luiz? O que é que isso te diz?
– Não me diz nada. Acho até bem bolado. Não há razão pra gente não ficar confortável quando...
– Mário Luiz! Era no lavabo. Se fosse no banheiro da suíte deles, vá lá. Não me interessa o que a Celinha e o Germano têm no banheiro deles. Mas isso era no lavabo, no banheiro das visitas. A Celinha estava fazendo uma declaração pública. Aquilo é uma mensagem ostensiva da Celinha para quem vai na casa dela.
– Então: uma gentileza dela para as visitas. Pro bumbum das visitas.
– Você não acha um acinte? Quase uma provocação?
– Por quê?
– Francamente, Mário Luiz. Eu me lembro de quando você ficou indignado com o cortador de cabelinho do nariz que a Flávia trouxe da Europa pro Mingão.
– O cortador de cabelinho do nariz era de ouro. O assento da privada é de quê? Espuma? No máximo de espuma.
– E o simbolismo da coisa?
– Simbolismo de quê? Da decadência do Ocidente? Do ponto em que chegou a alienação da elite brasileira? E você não pensou que podia ser kitsch de propósito?
– O que é kitsch de propósito?
– É quando alguém faz alguma coisa como forrar o assento da privada com um acolchoado zebrado sabendo que é kitsch e esperando que os outros entendam que o kitsch é de propósito, e achem graça. Você simplesmente não entendeu o assento da privada da Celinha, Marjori.
– Como você mudou, hein Mário Luiz.
– Eu mudei?
– E pensar que nós nos conhecemos num congresso de estudantes em Cuba.
– Marjori...
– Francamente, Mário Luiz!"
Luis Fernando Verissimo - Zero Hora - 09/05/2010
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