A linguagem é mesmo uma maravilha! É através dela que comunicamos, que realizamos, que trabalhamos, que compreendemos, que sonhamos, que criamos, que emocionamos, que amamos, enfim, que nos encontramos uns com os outros...
De ontem para hoje, fiquei pensando no que mais profundamente há de comum entre um vendedor ambulante, que sai de casa carregando sua mercadoria na esperança de vender o máximo possível para levar de volta para casa o mínimo de dignidade para sua família, e um grande empresário, criatura de negócios, que movimenta milhões ao vender e/ou comprar marcas, ações na bolsa de valores, etc. Seria o fato de ambos venderem algo? Sim, todos vendemos algo. Mas a profundidade da união que queria encontrar não era essa da finalidade do que fazemos.
Pensei,
calculei, raciocinei e concluí: o vendedor, o empresário, o artista, o
esportista, o cientista, o professor, o jornalista, o político, o médico, o
advogado, o cara que vende arte na praia, enfim, qualquer projeto de vida que
você pensar agora terá se realizado através do uso da linguagem. É ela que nos
une!
Sabe
o que faz uma pessoa que foi vendedor, empresário, artista e comunicador ser a
maior perda que os brasileiros sentem hoje? O tanto que ele soube usar a
linguagem! Pare para pensar um pouco: quem mais nesse Brasil, tão rico em
diversidade, conseguiu entrar na casa de brasileiros de todas as regiões do
país, de todas as idades, de todas as crenças, de todos os matizes? Quem mais
foi capaz de falar de um modo que não apenas era fácil de entender, mas que também
prendia a atenção de quem o ouvia falar, fosse a maior das bobagens, fosse o
assunto mais sério possível?
Quem
mais foi capaz de falar uma língua compreendida igualmente por alguém do interior
do Piauí e por alguém lá no Rio Grande do Sul, lugares com falas tão distintas?
Quem mais foi capaz de entreter com o mesmo zelo uma criança, segundo Vinicius
de Moraes, público mais difícil de falar ao coração, e, no segundo seguinte,
entreter o jovem, de interesses tão difusos, depois o adulto, que só queria
espairecer, e, por fim, o idoso, saudoso e feliz por se ver atingido na fase
que ninguém mais se interessa por ele? Quem mais deu voz a tantos
desconhecidos, esquecidos e até rejeitados pela sociedade? Quem mais foi capaz
de eternizar tantos bordões? Quem mais foi capaz de eternizar a onomatopeia do
próprio sorriso?
Professores,
escritores, cientistas, políticos, comunicadores, músicos... a meta de todos esses
é a mesma: compreender e ser compreendido. Para isso, precisam da linguagem!
Quantos desses passam anos a fio estudando para conseguir um ou outro momento raro
em que tenham realizado essa tarefa de compreender o seu público e por ele se ter
se feito compreender? Fernando Sabino, um dos maiores escritores de nosso país,
dizia que o maior elogio que podia receber era quando lhe diziam que suas obras
eram fáceis de entender.
Lembro-me
de que, quando soube que o Bob Dylan havia ganhado o prêmio Nobel de
Literatura, estranhei demais. Fiquei: como assim dão um prêmio que se refere ao
uso da língua para alguém que não é escritor? Hoje, oito anos depois, entendi
perfeitamente! O melhor artista da linguagem é aquele capaz de usá-la para que os
outros se sintam envolvidos e representados nela e por ela, é aquele cuja
palavra é um pouco a palavra de cada pessoa de uma nação, e que tenha feito
isso durante anos, décadas, transformando a sua arte. E só uma pessoa fez tudo
isso ao mesmo tempo no Brasil: Silvio Santos.
Um
dia antes da morte dele, concluí um trabalho acadêmico de uma disciplina do
doutorado. A professora da matéria havia solicitado um artigo autoral em que
analisássemos o comportamento semântico de um item lexical a nossa escolha. Eu
havia escolhido o verbo “criar”. Ao longo dos meses pesquisando, encontrei um
sentido interessante desse verbo, o sentido de popularizar, de lançar moda.
O
primeiro enunciado em que percebi isso era uma postagem com uma foto do Michael
Jackson usando uma jaqueta vermelha e embaixo a legenda: “Michael Jackson criou
o vermelho”. Aqui “criar” não significa produzir ou inventar, mas indica que Michael
Jackson deu visibilidade, estabeleceu a fama da cor vermelha... Não deu tempo
colocar no trabalho, mas eu poderia ter preenchido essa lista com: “Silvio
Santos criou o auditório em programas de TV”, “Silvio Santos criou a gargalhada”,
“Silvio Santos criou a contemplação do passado através da música”, “Silvio
Santos criou o respeito às crianças”, “Silvio Santos criou o domingo dos
brasileiros”...
E o
Brasil, tão rico de criações, viu nascer e morrer um Machado de Assis, que
criou a nossa literatura; viu nascer e morrer Tom Jobim, que criou a nossa
música; viu nascer e morrer Ayrton Senna, que criou o orgulho da nossa
bandeira; viu nascer e morrer Pelé, que criou o nosso futebol; e agora viu
nascer e morrer Silvio Santos, que, depois de ter criado tanto, agora criou aquele
sentimento representado por uma das palavras mais lindas de nossa língua:
Silvio Santos criou a SAUDADE.
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