Perdemos muito tempo com coisas que, absolutamente, não importam muito. E cá irei eu não ser exceção à regra: perder tempo. Mas, talvez, àqueles a quem esse recado se destina, isso será significativo.
Fora do meu ambiente profissional FALO sobre muita coisa, das tolices às utilidades públicas. E faço isso somente fora do ambiente de trabalho por julgar que lá é o LUGAR para servir aos que me buscam com a finalidade específica de aprender o que ensino.
Não sei se ficou evidente, não obstante as palavras em caixa-alta, que o tema desse texto é o tal “lugar de fala”. Também não sei se ficou evidente que esse meu texto se destina apenas àqueles cuja mente ainda encontra-se aberta a enxergar as coisas por outro prisma e não apenas conforme a minoria barulhenta. Para aqueles que já se decidiram, esse texto dirá muito pouco. Aliás, para esses, eu sequer tenho “lugar de fala”.
Estive tentando imaginar onde e como estaríamos hoje se caras como Sócrates, Aristóteles, Platão, Pitágoras, Euclides, Zenão de Eleia... tivessem que pensar se tinham ou não “lugar de fala” acerca dos temas de que trataram. Pode parecer exagero, mas, graças a caras como esses, nós podemos ler coisas interessantes e coisas asquerosas na internet hoje em dia. Graças ao debate filosófico e, posteriormente, ao debate acadêmico, foram possíveis diversos avanços na humanidade (inclusive a internet). Uma afirmação trivial, pois basta observar, por exemplo, como a troca de ideias e de experiências encurta caminhos, aumenta a velocidade de nosso amadurecimento.
Chegamos, contudo, a um ponto em que, exatamente do debate acadêmico, surgem ideias ditatoriais e tirânicas, que visam, por incrível que pareça, à anulação do debate, o preterimento da troca de ideias e de experiências, a seleção de quem pode falar e do que pode ou não ser dito. Parece um paradoxo que a academia promova essa autossabotagem, no entanto é exatamente a subversão da lógica a base de pensamentos como esse.
Fui expectador de uma discussão sobre a expressão "a situação tá preta", que, para alguns, não pode ser dita por ser racista. Sugeri uma aula do prof. José Luiz Fiorin sobre esse tema (para mim, o maior linguista vivo no Brasil). A exposição do professor era a de que há certos exageros, pois a expressão "a situação tá preta" tem origem na navegação. Trata-se de uma referência às nuvens da cor preta que indicam mau tempo para viagens marítimas. Associar essa expressão a algo racista é, para o professor, ampliar o preconceito e não diminuí-lo. "Ah mas só usa preto para coisas ruins"... Não sei se "nota preta" é algo ruim. Mas, enfim, não é esse o ponto...
(Um breve parêntese: Chico Buarque utilizou a expressão "a coisa aqui tá preta" na canção "Meu caro amigo", em coautoria com o grande Fancis Hime. Será que Chico Buarque foi racista? Enfim, retomemos...)
O ponto central aqui nem é a questão da expressão ou do racismo em si. Quero concentrar os esforços (talvez vãos esforços) à resposta que sobreveio: a de que o professor José Luiz Fiorin, uma das maiores autoridades brasileiras sobre estudos da linguagem, não tem lugar de fala sobre a expressão "a situação tá preta", pois é... branco!
Então, ecce thema! O tal "lugar de fala"... Escrevi há algum tempo um texto sobre uma sentença judicial acerca de uma acusação de estupro de uma influenciadora digital. Recebi de mais de uma pessoa o seguinte comentário: "você não tem lugar de fala". Ou seja: o professor Fiorin não tem lugar de fala sobre aquela expressão linguística porque é branco; eu não tenho lugar de fala sobre uma sentença judicial que envolve uma mulher porque sou homem.
Ignaz Semmelweis, médico do século XIX, foi responsável por uma descoberta que revolucionou a medicina. Num período em que um médico era considerado tanto melhor quanto mais sujo fosse seu avental, Semmelweis descobriu um modo de reduzir significativamente o número de mortes pós-parto: lavar bem as mãos e as roupas que ele utilizava durante o parto. Isso mesmo: um homem fez uma descoberta e influenciou a vida de mulheres porque ele falou algo de que, seguindo os dois "raciocínios" anteriores, ele não teria lugar.
(Pensei em trazer também a descoberta de Claude Veyne Winder, que sintetizou o ácido mefenâmico nos anos 1960, mas algumas pessoas nem sabem para que esse fármaco serve, então pode ser que a questão da irrealidade do "lugar de fala" não ficasse tão clara - ops, acabei de usar outra expressão racista, segundo as cartilhas!)
Meu principal objetivo aqui é o de refletir o seguinte: será que impedir o debate far-nos-á evoluir?
Alguns professores, no ambiente profissional, aplaudem e incentivam crianças ou adolescentes que decoram cartilhas que ensinam as expressões proibidas (com base nas impressões subjetivas e não na realidade), mas que não sabem citar duas famílias da tabela periódica ou que, se não tiver internet, não conseguem achar um sinônimo para uma palavra de sua própria língua. Essas crianças/adolescentes estão observando a fala do professor não-militante não para adquirir conhecimento, mas para levantar a placa de "expressão proibida" e, caso o professor argumente, rebater com a resposta padrão: o professor não tem lugar de fala.
Será que é isso que nos tornará melhores? Que nos livrará da subserviência a outros países quando se trata de avanços técnicos e científicos? Com todo respeito aos que pensam diferente, eu só consigo enxergar que a ansiedade, o déficit de atenção, a falta de foco, a desmotivação dessas crianças e adolescentes vêm precisamente do fato de estarem mais preocupadas se estão ou não em seus lugares de fala do que com seus lugares no mundo.
Àqueles que dão "um tempo no ressentimento" e dão "zoom nos pontos em comum", deixo meu apoio a continuarem assim, sem ampliar preconceitos e sem impedir o debate. "Estamos separados e divididos, mas um dia nós seremos a maioria".
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