4 de novembro de 2020

O tal “estupro culposo”

Um pequeno resumo cuja pretensão é simplesmente tentar compreender, pelo prisma da compreensão textual, um texto jurídico debatido em profusão pelo prisma midiático. Essa postagem não se trata de debate jurídico (afinal, não sou jurista), mas de um trabalho de compreensão textual (minha profissão) da sentença que serviu para ver o quanto os brasileiros somos analfabetos em matéria de política.

1) O juiz inicia a sentença resumindo toda a cronologia do processo, apresentando todas as diligências e decisões do caso, o que inclui o deferimento de prisão temporária do réu. 

2) Na fundamentação, o juiz apresenta a lei utilizada como fundamento pela denúncia inicial: 

 "Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009). Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009). § 1 o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009 – grifou-se)" 

 3) O juiz recorre a uma citação de Greco (2017): 

“deverá o agente ter conhecimento de que a vítima é menor de 14 (catorze) anos, ou que esteja acometida de enfermidade ou deficiência mental, fazendo com que não tenha o discernimento necessário para a prática do ato, ou que, por outra causa, não possa oferecer resistência. Se, na hipótese concreta, o agente desconhecia qualquer uma dessas características constantes da infração penal em estudo, poderá ser alegado o erro de tipo, afastando-se o dolo e, consequentemente, a tipicidade do fato.” 

Na prática, a lei deixou aberta uma possibilidade que foi bem aproveitada pela defesa. A possibilidade é a seguinte: a vítima não era menor de 14 anos (tinha 21 anos na data alegada) e sem enfermidade ou deficiência mental (a vítima não tinha essa condição e a incapacidade de oferecer resistência não era de ordem biológica) — exclui-se a primeira parte em que a lei serviria para o caso; o acusado não tinha conhecimento de que a vítima não poderia oferecer resistência — exclui-se a segunda parte da previsão legal. 

4) O juiz trata da definição de vulnerabilidade. Utiliza uma longa citação de Masson (2017), cuja leitura apressada/equivocada/desonesta deve ser colocada em debate: 

"A vulnerabilidade tem natureza objetiva. A pessoa é ou não vulnerável, conforme reúna ou não as peculiaridades indicadas pelo caput ou pelo § 1.º do art. 217-A do Código Penal. Com a entrada em vigor da Lei 12.015/2009 não há mais espaço para a presunção de violência, absoluta ou relativa, na seara dos crimes sexuais. 

No entanto, nada impede a incidência do instituto do erro do tipo, delineado no art. 20, caput, do Código Penal, no tocante ao estupro de vulnerável, e também aos demais crimes sexuais contra vulneráveis. Com efeito, o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime não se confunde com a existência ou não da vulnerabilidade da vítima. 

[...] Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico. Esta conclusão é inevitável, inclusive na hipótese de inescusabilidade do erro, em face da regra contida no art. 20, caput, do Código Penal." 

É, pois, a citação de Masson (2017) que remete o famigerado “estupro culposo”, quando o autor está exatamente rechaçando essa possibilidade! 

5) O juiz reitera que “estupro de vulnerável” pressupõe, além da vulnerabilidade (pela idade ou pela condição física/psicológica), o pleno conhecimento do agressor de tais condições. Isso quer dizer que não houve o estupro? Não! Quer dizer que o juiz está dizendo não houve “estupro de vulnerável”, o crime pleiteado pela acusação. 

6) O juiz indica que não ficou totalmente demonstrado (com as provas apresentadas) que a vítima estava impossibilitada de oferecer resistência. 

7) Um trecho importante da sentença é a letra do próprio juiz: 

“não se desconhece que há provas da materialidade e da autoria, pois o laudo pericial confirmou a prática de conjunção carnal e ruptura himenal recente (fls. 764/765), também não se ignora que a ofendida havia ingerido álcool. Contudo, pela prova pericial e oral produzida considero que não ficou suficientemente comprovado que Mariana Borges Ferreira estivesse alcoolizada – ou sob efeito de substância ilícita – , a ponto de ser considerada vulnerável, de modo que não pudesse se opor a ação de André de Camargo Aranha ou oferecer resistência. Para tanto, o exames de alcoolemia e toxicológico (fls. 880/882) apresentaram resultado negativo.” 

Isso significa que é possível dizer que houve a relação sexual e que ela aconteceu com o acusado. No entanto, para o juiz, as provas de que não foi consensual são insuficientes.

8) Em relação às provas testemunhais, o juiz demonstra que apenas a versão da mãe é convergente com a versão da vítima. As demais testemunhas (inclusive as arroladas pela própria vítima) não corroboram os depoimentos da mãe e da filha. 

9) O juiz apresenta a tese de que o testemunho da vítima, por si só, pode sim ser elemento substancial, mas quando esse testemunho é “coerente e harmônico” com os demais elementos de prova, incluindo outros depoimentos. 

10) Uma das bases de sustentação da acusação é a de incapacidade de resistência, gerada por ingestão de álcool ou substância entorpecente. As imagens externas, cedidas pela Polícia Militar, indicam que a capacidade motora da vítima estavam intactas (de salto bem alto, andando normalmente, no percurso externo ao clube). 

11) Segundo o juiz, embora o depoimento de uma vítima de violência sexual seja preponderante, os demais elementos de prova precisam corroborar de algum modo a prova oral. No caso específico, há dúvidas em relação à verossimilhança do depoimento, considerando as provas colhidas. E, como sabido e citado no fim da sentença, “in dubio pro reo”. 

12) A decisão final é portanto a de que não há como definir quem está mentindo, uma vez que a prova oral da vítima só converge com a prova oral da mãe. Todas as demais provas orais e periciais divergem do que foi apresentado pela acusação. 

13) O juiz ressalta que a decisão não pode ser duvidosa, que ele precisa estar 100% convicto para apresentar sua sentença. 

14) Podemos resumir a peça no seu trecho final: “as provas acerca da autoria delitiva são conflitantes”. Isto é, não há como o juiz declarar culpado se ele não tiver elementos que fundamentem a sua certeza de que o acusado cometeu, de fato, o crime.

O resumo da ópera: 

O problema disso tudo é a revolta de alvo errado. Pelo modo como isso foi midiatizado, o leitor mediano (aquele que não vai ler a sentença nem buscar todas as informações acerca do caso, vai se contentar com manchetes e resumos) é induzido a se revoltar contra o juiz e contra o promotor do caso por terem absolvido o cara sob a alegação de “estupro culposo” - que sequer aparece no processo. Quem deveria ser o alvo de nossa revolta? Os parlamentares, cujos projetos vão deixando brechas na lei para que desgraçados saiam impunes diariamente. Talvez o juiz e o promotor do caso tenham feito de tudo para sentenciar o cara, mas se eles encaminham uma decisão e, num tribunal de segunda instância, a decisão fosse invalidada, os dois poderiam responder judicialmente por isso (de acordo com a lei de abuso de autoridade - criada por quem? Isso mesmo: pelos parlamentares).

Para ilustrar, um caso concreto: um dia desses um inseto foi filmado dando socos numa mulher. Descobri que o animal já responde a não sei quantos outros processos por agressão a mulheres, mas está respondendo a todos eles em liberdade... (se ele não estivesse em liberdade, não teríamos visto a cena que vimos) Por quê? Porque no Brasil não há prisão em segunda instância. E por quê? Porque a Constituição deixou a brecha. E onde está o conserto para essa brecha? Deve estar enfiado em alguma parte do corpo nada esguio do presidente da Câmara (Rodrigo Maia), que nunca colocou esse projeto pra ser votado.

A análise enviesada analfabetiza as pessoas, que já sabem muito pouco sobre o funcionamento dos poderes da nossa República, sobre legislação e sobre o papel de vereadores, deputados e senadores na consolidação de uma Justiça. Voltamos nossa mira para o alvo errado. E é o verdadeiro problema do brasileiro: observar os problemas sob perspectiva errada faz com que nunca consigamos resolvê-los, só os multiplica.

E, como somos todos Dory (sofremos de perda de memória recente), no próximo dia 15, o eleitor não vai pensar em nada disso e vai votar no candidato que já está há duzentos mandatos no cargo, só porque "ganhou/ganhará" uma coisinha em troca. Ou, tão ruim quanto: vai fazer voto de protesto e colocar algum palhaço na Câmara Municipal.